Por Fernanda Mendonça e Marcelo Pimenta e Silva
"Não se trata de jogar fora o que eles fizeram, mas também não se amarrar apenas a isso, afinal a vida continua", declara Bernardet sobre o Cinema Novo.
Um dos homenageados do III Festival de Cinema da Fronteira, crítico, ficcionista, roteirista, teórico, pesquisador e autor de diversas obras sobre o cinema brasileiro é Jean-Claude Bernardet, dono de um olhar apaixonado pela Sétima Arte e de palavras que expressam muito bem o que querem dizer. Nascido na Bélgica, mas de família francesa, Bernardet passou a infância em Paris e veio para o Brasil aos 13 anos. O teórico, diplomado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e doutor em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA), concedeu, ontem, entrevista à FOLHA DO SUL.
Depois de alguns anos, como crítico de cinema em jornais de São Paulo, Bernardet se tornou um interlocutor do grupo de cineastas do Cinema Novo. Foi um dos criadores do curso de cinema da UnB, em Brasília, e deu aulas de História do Cinema Brasileiro na ECA. Foi perseguido e exilado pela ditadura militar, que o retirou apenas das atividades acadêmicas, em 1968, já que o pesquisador achou outros meios para continuar ativo e só conseguiu voltar a USP em 1979.
Entre as suas obras estão os dois ensaios poéticos de média-metragem, dirigidos por ele, que falam de São Paulo, cidade em que mora, "Sinfonia e Cacofonia" (1994) e "Sobre Anos 60" (1999). E o livro que foi um marco, em termos de crítica cinematográfica no país, "Brasil em Tempos de Cinema" (1967).
A homenagem a Bernardet, que acredita no potencial do cinema brasileiro, acontece hoje às 18h, no Centro Histórico Santa Tereza.
Por que vir até Bagé, mesmo com todos os problemas que o senhor tem para se deslocar?
Bom, da minha parte, eu trabalhei desde os anos 60, eu sempre fiz palestras e viajei pelo nordeste. O meu trabalho vai no sentido de não fortalecer o regionalismo e não fortalecer a ideia de que Rio e São Paulo são nacionais e o resto é regional, essa é a minha linha de trabalho, sempre fora do eixo, além de não fechar as regiões sobre seus tradicionalismos. Não quer dizer que não possam fazer isso, mas isso não tem que ser um dever.
Eu estar aqui faz parte da minha linha de trabalho. E vou dizer mais uma coisa, eu estou ficando cego, essa é uma doença causada pelo envelhecimento. Estar aqui é uma possibilidade de estar com pessoas jovens, pessoas dinâmicas, que fazem as coisas, e pra mim tem um sentido de vitalidade.
Algumas pessoas acreditam que Bagé possa se tornar um pólo de produção em cinema. Na sua concepção essa possibilidade existe?
Que existe, existe com as mídias digitais. Depende do que as pessoas querem fazer. A questão que se coloca depois é como circulam as coisas.
Aqui no Brasil é tradicional que se pense a produção desvinculada da circulação. Então é importante saber o que você produz, pra quem você produz e como chega.
É sempre bom pensar eu produzo pra que, produzo em que. E não esquecer que os pequenos festivais, os grandes eu tenho as minhas duvidas, mas os pequenos festivais são muito importantes para a circulação dessas obras, porque eles são a janela para o cinema, que não seriam vistas, caso o contrário.
Em 1968, no Festival de Brasília, o senhor lutou para que O Bandido da Luz Vermelha ganhasse o prêmio. Passado mais de 40 anos, você e Helena Ignêz (musa do Cinema Marginal) são homenageados em Bagé, em sua opinião qual é a herança desse movimento?
Nessa situação que você coloca a minha maior curiosidade é ver o filme da Helena Ignês (Luz nas Trevas- película que dá sequência ao filme Bandido da Luz Vermelha).
Apesar de eu ter começado a minha carreira nos anos 50, eu não passo todo o dia remoendo isso, eu 'to mais ou menos preso ao passado, mais por uma condição de estar ficando cego e de não poder ter uma atividade muito grande na universidade. Mas eu não me prendo ao passado, mas uma coisa que é indiscutível, se algumas pessoas como Rogério Sganzerla e Glauber se tornaram ícones para a juventude, a importância que nós lhe damos pode ser muito especial para a juventude.
Certa vez estive num evento sobre o cinema dos anos 60 e de repente uma moça gritou: "Eu não aguento mais!". E ai, eu parei e pensei que ela não aguentava mais era essa referência aos anos 60. É Gláuber, é Cinema Novo, é Bressane, é Sganzerla. Então, não se trata de jogar fora o que eles fizeram, mas também não se amarrar apenas a isso, afinal a vida continua.
O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla |
Qual a sua opinião sobre o recente ciclo de filmes que falam da ditadura? Não se criou um "gênero" ou "filão" de filmes sobre o período como os filmes direcionados ao público espírita?
É difícil você pensar essa questão ditatorial só em termos cinematográficos, porque isso é um trabalho de sociedade e o cinema faz parte disso. Agora, uma das questões que parece nos estrangular no Brasil é o aparelho legal que foi montado no fim da ditadura que não possibilita julgar os militares e torturados, diferentemente do que está acontecendo em países como Argentina, Chile e, mais recentemente, no Uruguai. A produção dos filmes brasileiros sobre esse tema está dentro de um ambiente em que a abertura não funciona. Por isso, esses cineastas têm que serem vistos dentro dessa sociedade. Nós estamos um pouco numa situação de vivermos dizendo que a ditadura não foi tão violenta quanto na Argentina, mas há um problema de não termos um instrumento legal para julgar os crimes cometidos pelo regime.
Hoje (13/12) marca o 43º aniversário da promulgação do AI-5 (Ato Institucional Nº 5 colocado em vigor pelo presidente Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968 que cerceava todas as liberdades políticas e civis e funcionava como um "golpe dentro do golpe"), o senhor vivenciou esse período, como era fazer críticas cinematográficas e dar aulas nesse ambiente?
Bem, eu caí com o AI-5. O AI-5 foi aplicado a USP no inicio de 1969 e eu voltei com a Lei da Anistia em 1979. Com o AI-5, eu tive uma vida paralela. Houve uma lista de 25 professores da USP, cujo AI-5 fez com que os professores não recebessem dinheiro público. O que evidentemente impedia qualquer trabalho em universidade que não fosse privada. E impedia também uma série de trabalhos com dinheiro público. Era uma maneira de nos impedir de sermos ativos. Mas alguns conseguiram e até mesmo se tornaram presidente da República como o FHC, e eu fiz alguns filmes, e muitos cursos de cunho de resistência, o que possibilitava que eu pudesse viajar muito ao Nordeste, junto a estudantes, além de propostas de formação de cine-clube. E também na época eu fui um crítico da oposição, escrevendo para o jornal Opinião, um jornal alternativo e que tinha artigos contra o regime do período. Se a ditadura impediu de eu dar aulas, eu pude ter uma participação ativa.
O senhor era interlocutor do Cinema Novo. Depois de uma publicação em 1967, Brasil em Tempo de Cinema em que o senhor fez uma crítica ao movimento e que não foi bem recebida pelo Glauber Rocha. O senhor ainda pensa que era um cinema feito pela "classe média"?
O Glauber também pensava isso. Eu e Glauber nunca brigamos, até 1980 mantivemos uma relação boa. Se você pegar o "Câncer" (obra dirigida por Glauber Rocha) filme que foi rodado em 1968, filmado depois do Brasil em tempo de cinema e pegar o filme montado um pouco depois, em 1972, verá que o cinema é um trabalho de uma classe média radicalizada. A interlocução não só continuou como foi profunda. A ideia de que eu me cortei das pessoas é falsa. Eu me cortei foi dos papos de bar, isso reconheço que sim. Agora que houve uma interlocução funda, houve sim, porque não é frequente um cineasta como Eduardo Coutinho, um dos maiores cineastas brasileiros vivos, e que fez um dos filmes principais como o "Cabra Marcado para Morrer" dizer que dentro da concepção do filme, ele trouxe aspectos que já tinham sido levantados como problemáticas em meu livro Brasil em tempo de cinema, com quase 15 anos de publicado.
Então, a interlocução é não entrar num debate dizendo "sim" a tudo.
Nesse período, meados dos anos 60, o conceito de "classe média" era um conceito muito tosco. Se eu tivesse feito esse livro, um pouco mais tarde eu certamente teria uma conceituação mais elaborada que eu não tinha na época. Mas era o que eu tinha ao meu alcance e teve uma repercussão. Hoje, eu escreveria diferente.
Glauber Rocha |
Como o senhor avalia o cinema atual, por exemplo, as obras da "indústria Globo"? Por que alguns filmes também bons não entram nesse circuito?
As pessoas acham que os intelectuais não gostam da produção da Globo. Eu, como intelectual, sou favorável a uma produção industrial vinculada a grandes circuitos. Não sou contra a obras como "Se eu fosse você". Sou a favor de "Tropa de Elite" e não é verdade que sou contrário a esses filmes. O que acontece é que só alguns filmes conseguem ir para os circuitos, esses filmes em geral não vão se não tiverem algum vínculo com a Globo, como por exemplo "O Palhaço", que entrou em um grande número de salas, não é da Globo, mas tem uma distribuição vinculada e pensar que não tem sentido em dizer que o que importa é o Festival do Rio e o de Bagé não tem essa importância. É o contrário: essa complexidade que importa. Você pode ter a certeza que eu não meti o "pau" (sic.) nos filmes da Globo.
Ainda existe o preconceito de que muitas pessoas não assistem filmes brasileiros porque o cinema nacional é muito ruim?
Nos anos 50, 60, um dos objetivos do Paulo Emílio Sales Gomes era convencer a elite cultural, elite social da importância do cinema, só que a história tem vários ritmos, e a histórias das mentalidades é de ritmo mais lento, a mentalidade é o que mais demora a se transformar, de forma que assim modificações sensíveis em relação ao panorama que acontecia nos anos 60, daquele desprezo total de não considerar um cineasta, como o Glauber Rocha, isso não existe mais. O Coutinho, cineasta é convidado, foi pra Bélgica, mudou muita coisa, no entanto tem que reconhecer que nas camadas mais cultas essa resistência continua.
Livro que foi um marco na crítica cinematográfica brasileira |
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