segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A musa do Cinema é a musa do Festival da Fronteira

- Eu acho incrível esse Festival de Cinema da Fronteira -
- É preciso mudar e transformar o Brasil -
- Ninguém investe no cinema brasileiro, dependemos dos editais. É muito difícil produzir filme no Brasil.


Por Fernanda Mendonça e Marcelo Pimenta e Silva

Os tempos não são mais de guerra fria e a contracultura há muito deixou as ruas e o cotidiano para tornar-se lembrança de um período mágico e de convergência entre as artes, a política e a sociedade, porém Bagé está vivendo em seu III Festival de Cinema da Fronteira um encontro único com o passado que traz novas perspectivas à Sétima Arte. 
A atriz, produtora e diretora, Helena Ignez, uma das homenageadas do Festival, é personagem viva da contracultura brasileira, mas não é escrava do passado. Vai além dele, ao manter vivo o discurso da juventude anárquica daqueles jovens, que como ela e o seu marido, Rogério Sganzerla (já falecido), ousaram criticar o mundo conservador e, que ainda hoje, busca encontrar o verdadeiro Brasil. 
Essa juventude é exalada em seus pensamentos e projetos e na vontade de ainda produzir um cinema autoral que agrade ao povo, que ele ria, mas que também reflita em suas belas imagens e que talvez se questione se esse Brasil de múltiplas faces apresentadas em seus filmes não é a sua própria representação.
E nesse processo quase antropofágico, Ignez vem até uma cidade de fronteira do Rio Grande do Sul falar de seus projetos e de seu passado, tempo que é o presente, pois em sua carreira de artista de vanguarda, ela foi a atriz que como uma guerrilheira da arte, trouxe à cena à mulher do século 21 em pleno Brasil ditatorial dos anos 60 e 70. 
Nesse período sua beleza estonteante incendiava em películas como o "Assalto ao trem pagador", o "Bandido da luz vermelha" e a "Mulher de todos", todavia sua beleza vinha com atitudes transgressoras que mostravam uma mulher que não aceitava concessões e nem meros rótulos. Helena Ignez, essa baiana de fala tranqüila e de ideias pontuais sobre a arte, a sociedade brasileira e o próprio futuro do cinema, conversou com o FOLHA DO SUL, numa entrevista que serve como registro histórico do momento em que Bagé encontrou o Brasil.
 
 
 
 
 
Helena conversa com a reportagem do Folha - Foto de Antonio Rocha
 

Como é a produzir filmes no Brasil?
Existe um problema dos filmes no Brasil só serem patrocinados pelos editais, e ainda bem que existem esses editais que fazem parte dessa era Lula. 

Existe incentivo financeiro para o cinema brasileiro? 
Não, pelo desconhecimento total do cinema brasileiro pela elite culta, que acaba desprezando-o, mas o que eu culpo, principalmente, é o desconhecimento. Então, não existe investimento nenhum nessa indústria, no bom cinema. 
A gente depende completamente dos editais, com "Luz nas Trevas" (2010- filme de autoria da atriz), que está aqui, foi assim. Eu ganhei todos os editais em dois anos, mas esse é um caso raríssimo, normalmente, você não entra com essa sorte. Essa sorte eu acho que veio de vários lados, inclusive por ser um filme do Rogério Sganzerla, então ganhamos quatro editais e só assim podemos fazer o filme, mas normalmente pra você ganhar quatro editais, você passa quatro anos. Então é extremamente longo, esse que é o grande problema do cinema de produção, do cinema bom, o verdadeiro cinema, não o cinema que pega o lado da televisão sem ser televisão. O número de filmes nacionais, que passa na televisão é muito pequeno, a não ser no Canal Brasil, que dá uma divulgação enorme para o cinema brasileiro.
Como tu observa a nova produção cinematográfica e os novos diretores?
Olha, os jovens cineastas são os melhores, isso é impressionante como está vindo uma safra absolutamente maravilhosa de cineastas brasileiros, que já estão ai com seus primeiros, segundos, terceiros filmes, como o próprio Eryck Rocha (cineasta de Transeunte, filho de Glauber Rocha).

E a possibilidade de fazer filmes em suporte digital, isso facilita uma maior produção cinematográfica?
Facilita muito, mas o 35 mm ainda tem o seu lugar e muito dos festivais não aceitam cópias a não ser de 35 mm. As leis brasileiras exigem, que num determinado orçamento você tenha uma cópia em 35 mm pra entregar para a Cinemateca Brasileira, então o cinema 35 mm barato pode ser feito com resultados extraordinários, é o caso do próprio "Luz nas Trevas", que já abriu a sua carreira brilhante, passando junto ao "Bandido da Luz Vermelha" (1968- Rogério Sganzerla), no Festival de Cinema de Locarno, na Suíça.

Como foi dar continuação à película de Sganzerla, "O Bandido da Luz Vermelha" através do roteiro que ele deixou?
O roteiro me foi dado por Rogério, ele tinha mais de 500 páginas, era mais do que um roteiro, eram páginas soltas, escritas, para serem transformadas em um roteiro, com um valor extraordinário literário. 
Nós já recebemos inúmeras propostas para lançá-lo como roteiro, mas estamos escolhendo, é um roteiro realmente extraordinário, de uma qualidade Shakesperiana, grande roteiro, inclusive o Jean Claude Bernardet (teórico do cinema brasileiro), ontem, me perguntou: - Você não quer editar o roteiro de Luz nas Trevas? Isso era urgente, um roteiro que vai ser editado por si só. Reorganizei para filmá-lo como um roteiro normal, nos moldes que se pedem ao filme, com aquela metragem, 90 minutos. Essa parte é toda minha, que foi uma parte de seleção e de trabalho de construção do que eu tinha, eu tinha mais do que precisava, eu tinha ali três roteiros e dali eu tive que fazer um, essa é a minha contribuição para o roteiro de "Luz nas Trevas", eu não usei uma palavra minha.

Como se constituiu como uma mulher que atua, dirige e produz?
Eu comecei fazendo de tudo, inclusive escrevia e quando eu comecei a namorar o Glauber era uma garota ainda, nós dois éramos dois garotos. Ele me conheceu escrevendo, o que poderia ser para cinema, por vontade de ser atriz. No primeiro trabalho que eu fiz, que o Glauber também fez, "O pátio", eu tenho um trabalho autoral, não está lá, mas tá todo ligado a minha atividade de atriz, dançarina, coreografa. Eu tenho uma parte da co-direção desde o começo, mas eu não ia disputar a produção com o Glauber e depois com o Rogério, então não fazia sentido. Mas eu dirigi também, nos anos 70, com o Rogério e com o Júlio Bressane (cineasta do Cinema Marginal e Novo). Depois eu fiz um curta, meu, que foi selecionado para milhões de festivais. É uma vontade que vem comigo há muito tempo e agora é realmente uma obrigação metafísica, é uma missão de continuar um trabalho que foi interrompido, porque Rogério morreu no auge da sua produção intelectual, sendo glorificado também por esse roteiro, que ele deixou, que eu tenho nas mãos, então o "Luz nas Trevas", se apoderou do Bandido da Luz Vermelha. Ele pode fazer isso, ele é um filme impar, ele não é meu, ele também é do Rogério e ficou um filme extraordinário e digo sem erro, o extraordinário vem muito da origem, que eu também estou, graças a Deus, o próprio Bandido....
 
 
 
 
 

A transgressão dos seus papéis ainda existe? No "Luz das Trevas" ele se faz presente?
Eu acho que ele continua presente no "Luz nas Trevas", do personagem inclusive que eu faço, ali é o ápice, porque ali é a transformação dele. Então é o ápice, porque ela, essa personagem transgressora é intergaláctica, ela entrega a ele uma mala que é uma mala do eu, a identidade perdida. Ela entrega o eu a ele, pra bom entendedor meia palavra basta. 
Esse filme faz parte de um Cinema que pensa, dentro de um cinema completamente comercial. Ele agrada qualquer pessoa que assiste.
 
 
Ney Matogrosso e Helena Ignez em Luz nas Trevas
 

Como era ter um comportamento transgressor em plena ditadura militar?
Eu conheci os dois lados, conheci um lado, de celebridade, porque o cinema estava no auge, então estrela de cinema era o auge, esse período era absolutamente celebridade, e ao mesmo tempo distância, que pra mim não era bom. As pessoas se distanciavam, tinham medo e o trabalho começou a ser cortado na época da ditadura. As pessoas tinham medo do comportamento transgressor
Na minha vida pessoal também era assim, mas no sentido de costumes fashions, vamos dizer assim, inclusive a própria forma de me vestir, que é diferente. Então é a mesma coisa, eu também tenho esse deslocamento hoje igual, porque me desenvolvi como ser humano de uma forma peculiar, inclusive no vestir, no ser, então sempre transgredindo de certa forma. Conheço isso, claro que na época era ditadura, e o conservadorismo era mais forte e excluía, dos bens de consumo, das produções.
 
 
 
 
 

Sobre o que fala o seu novo projeto cinematográfico intitulado "Ralé"?
No fundo o filme fala sobre a transformação que é possível nas pessoas através do pensamento, porque são todas pessoas que a vida de alguma maneira chicoteou em algum momento. Sempre por autodestruição e elas se transformaram. Nesse período, elas estão saindo para uma transformação maravilhosa através do pensamento.
 
Em que fase está a produção?
Esse filme está nascendo e estamos captando recursos. Algumas coisas conversadas, com pessoas que se interessam em captar verbas. Não é um momento fácil para a cultura.
 
Tem alguma previsão para o começo das filmagens?
Eu tenho algumas filmagens em maio em Manaus porque é a época perfeita para se filmar, porque depois com a chuva já começa a dificultar, porque o filme tem uma parte grande junto a uma população ribeirinha, com sequências diferentes que participam o Ney Matogrosso e eu, ligados à cultura amazônica e xamânica. Um filme que tem um apelo muito forte. E a Aurora Leão (Curadora do Festival da Fronteira) tem sido importante nesse processo porque além de ser atriz no filme ela tem essa rede de contatos com Manaus e com a Secretaria de Cultura da cidade. Manaus é um lugar elegantíssimo. Um lugar do Brasil que precisa ser conhecido e é a porta para o epicentro do mundo que é nosso e que é a Amazônia. E nesse pensamento antropofágico ligado a Oswald de Andrade e ao Rogério Sganzerla, porque a Ralé é uma história ligada a esse pensamento. 
É um filme de baixo orçamento com 1 milhão de reais. O filme terá também locações em uma cidade grande, penso em São Paulo, para fazer cenas de uma cidade que está em construção e vai mostrar a identidade brasileira

O relacionamento com Glauber Rocha no começo da sua carreira, o namoro com Julio Bressane e o casamento com Rogério Sganzerla foram definitivos para o seu envolvimento com o cinema?
Absolutamente, sim. Glauber foi definitivo, assim como Rogério. Eu conheci Glauber com 17 anos de idade e nós tínhamos a mesma sensação de mundo. Achávamos que estávamos numa província e queríamos ir longe. Era um grandíssimo companheiro, muitíssimo próximo a mim. Meu cinema é muito "Glauberiano", então eu tenho esse elo e depois foram 35 anos de paixão e amor inacabado e eterno com Rogério, na arte e na vida, no perceber o que é a arte e a tragédia que é a genialidade. E tivemos filhas e netas. Eu tive o dom de unir e valorizar essa coisa, mas eu também destruí muito a minha vida. 
Uma dedicação também espiritual ao cinema de Julio Bressane e que está totalmente presente nos filmes. Júlio é um mestre e gostar do cinema de Julio Bressane é um passe de inteligência. E é uma pessoa genial e íntegra. E ele parece nessa relação de abrir caminhos, pois ele era o único brasileiro jurado no festival de Roterdã (Holanda) e agora eu fui convidada para ser, o que para mim é uma honra e isso tem um peso.
 
 
 
Rogério e Helena
 

Como é carregar o título de "musa do cinema novo"?
Esse título foi dado por Luis Carlos Barreto através dos filmes que fiz no Cinema Novo, como o "Padre e a Moça", "A grande Feira" e o "Assalto ao Trem Pagador", muitos produzidos por ele. Um ótimo fotógrafo e ele me deu esse título. Ele trabalhava na revista mais badalada da época, a Cruzeiro, e me botou na capa, como "Musa do Cinema Novo". Depois, mais tarde, me associaram como musa do Cinema Marginal.
 
 
A musa
 
 
Luz nas trevas é o seu grande filme?
É o meu filme maior. Diferente do "Canção do Baal", filmado em formato digital, esse é filmado em película. Por ter ganhado quatro editais e ter um set, o mais incrível e luxuoso. O mesmo diretor de produção dos filmes de Walter Salles. Então, era tudo em alto nível. O Ney (Matogrosso) disse "Mas isso não é baixo orçamento, isso é alto orçamento!".

Dizem que após seus personagens, as atrizes brasileiras teriam se inspirado no seu estilo transgressor de interpretação. Tu acreditas nisso?
No cinema, sim. Mas de qualquer forma em "Mulher de Todos" (1969- Sganzerla), como disse maravilhosamente o Zeca (Brito), é difícil de fazer outro filme com atuações daquele tipo. Tudo contribuía. Em primeiro lugar, o momento político de 1968 invulgar da criatividade. Você já entrava com uma carga artística e isso fica evidente com a qualidade dos filmes do mundo inteiro daquele período. Tinha uma convergência extraordinária. Depois tinha um gênio do cinema que nasceu aqui perto em Joaçaba (SC), que é Rogério, e junto a pessoas antenadas, inclusive pessoas que tiravam o dinheiro do banco para fazer. Depois, 15 dias após o lançamento fomos pagos com o sucesso de público. Agora, para ter outra "Mulher de Todos" vai demorar uns cem anos.

Jean-Claude Bernadet (crítico de cinema) disse no passado que o filme "Mulher de Todos" era o melhor filme brasileiro de todos os tempos e agora ocorre essa sinergia de vocês estarem em Bagé num mesmo evento e sendo homenageados. Como tu observas esse momento?
Eu acho ele adorável e estou aqui por uma convergência, num momento cheio de trabalhos. A distância de Porto Alegre a Bagé é quase uma "Rio-São Paulo" e por uma sinergia que estou aqui nesse momento especial.

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