quarta-feira, 13 de abril de 2011

O verdadeiro “blue lamento” de Lígia






Fechei o livro. Liguei a tevê e pensei no que poderia ser feito para aquela noite mudar. Pensei no fim do mundo que virá tão cedo nas minhas crenças, que perdi as esperanças de encontrar uma amada que ame amar até morrer. Era melhor ficar quietando a língua e esperar por um novo pensamento que traduzisse toda a apatia e conformismo habitual, o mesmo que estupra qualquer forma de criatividade e faz com que a maior vitória humana seja praticar masturbações no escuro do quarto.

Que se dane a obrigatoriedade da segurança! O mundo é tomado de armadilhas, mil trilhas para o destino, para que no fundo apenas ele, possa se destinar sozinho, sempre com a sua escolha e livre arbítrio. Uma vida selvagem e primitiva, com nascimento, com entorpecimento, com envelhecimento e morte, espera sempre romper as entranhas da mediocridade.

Então, se eu reclamasse agora, no mínimo traria um pranto vulgar e bem poético com rimas e estrofes delineadas pelas normas acadêmicas. Mas não posso contar decassílabo quando a porra do mundo está agonizando lá fora! Só o que posso fazer é pular na fogueira e arder também. Não posso falar nem isto, nem aquilo, sem que minha voz não esteja muda. Seja pela vulgaridade da pompa e das medalhas que ditam os homens verdadeiros ou pela certeza dúbia e paradoxal que faz com que estupradores, homicidas, paranóicos e corruptores sejam idolatrados por verdadeiras latrinas ambulantes.

Por isso dispenso ídolos neste momento... Queimem todas as glórias em um velho cinzeiro.
Quando eu morrer deixarei na terra apenas palavras, que unidas ventarão como pétalas e folhas de outono, sem nunca estancarem.











2

Um cheiro de morte toma conta da memória e ela sussurra arrependimentos para aqueles velhos senhores que ficam espalhando pedaços de dor para os pombos. Ela passa por entre os ciprestes com uma leveza estranha. É a moça bonita sem namorado que caminha devagar pela praça da cidade.

Ela é a menina de olhar perdido que dá risadas engraçadas e que pensa no futuro sempre pela perspectiva da lógica, como se tudo pudesse ser dois mais dois. Ela é do final dos anos oitenta e nunca soube o que era amor de novela, mas sabe como poucas, esperar por um amor cheio de lirismo de bar.

Ela é a menina que fala baixinho e faz com que todas as coisas sejam diminutas para o brilho daquele sorriso.
O mundo não tem vez para aquela menina. Sem sonhos, planos, desejos ou beijos assaltados, nada impede a tristeza neste mundo quando ela suspira que ninguém lhe quer amar.

Ela colhe o por do sol no quarto sempre com as janelas abertas, esperando um verso, ela só quer um verso que um dia seja dito. Ela sempre adormece com os olhos negros.


Alguns preferem fechar os olhos e cantar balançando os braços. Outros acendem cigarros e desenham borboletas de fogo pela escuridão. Mas os tímidos sempre têm o medo de acordar. Esperam que um dia o próprio tempo canse de esperar nessa paz tão absurda e violenta, que acalma pelos cantos aqueles medrosos não suicidas.

Em círculos, os amantes jazem pelo salão, escutando um sax adormecer os corações enlutados. Em algum desespero escrito em portas de banheiro, ficaram as juras de mil mortos.

Os amantes embriagados sempre tomam conta das avenidas cobertas por árvores e, nelas vigias absortos, deixam um recado que vem e vai às gotas de lágrimas ou chuvas de janeiro.

Ela diz que o ama pela vida toda e ele responde: “Amor, não te deixarei até o próximo carnaval...”.

Palavras sempre são ditas na intenção de esconder alguma violência física que jamais seria permitida.

Dois corpos dividem a dor em cada parte por serem amantes. Viciados sempre afirmam um falso “nunca mais”, mas logo retornam à ilusão como crianças com anseio de serem reis e rainhas de algum reino escondido em uma terra do nunca.











3

Na tevê, um Romeu gordo passeia a vista pelas candidatas ao amor verdadeiro em um programa dominical.

À venda na parada de sucessos um arrependimento cheio de clichês e um coração safenado também esperam sua chance de fazer promessas... Tantas corroídas por mentiras.

E com receio, bate à porta, um estranho com postais de um ano novo que nunca chegou. E ele pensa que seu corpo prefere à sombra, a uma luz não fecunda.

Sua rainha está bem longe, nem as estrelas ele pode alcançar, ele pensa. E com o sereno da noite toda a vigília passa brilhosa, são tantas e tão lindas que parecem sair de um desenho de beleza arquitetônica, mas sempre elas passam e desviam o rosto. Engendram um estranho jogo, para morrerem sozinhas no banheiro, esperando, esperando, esperando que você chegue e fale um verso, algo que pareça com um sonho desenhado.

“Não terás meu amor, se continuares em silêncio!”, diz a Madona de vidro e maquiagem. Uma oferenda ao medo que apossa as almas... Uma puta tão inocente, que feitiço nenhum dobraria aquela valentia de ser uma mulher da rosa mais vermelha que jamais teria a tinta coagulada.

"Tudo bem assim, sempre culpará um amor desfeito em um blue lamento naquele tempo que nunca foi o nosso tempo", diz a mulher que tanto amor me deu.

Melhor desligar a tevê e encher a cara com “vida ao vivo”. Todas bem bonitas e pútridas tomadas de rotinas adulteradas por vícios baratos. Era o bar minha única saída.


 








4

Ela dança um blue. Ela sempre faz isso quando ninguém pensa em dar alguma olhada. Talvez, seja só uma ferida no coração que logo vai passar, pensa o Léo. “Grande coisa! Todo mundo se diverte com a decadência alheia”.

Na mente deteriorada da menina, ela se acha uma deusa indiana com todos aqueles braços saindo do corpo branco e esguio.

Ainda não sei o seu nome, mas poderia lhe dar um nome qualquer. As pessoas precisam de nomes hoje em dia. “Que tal Josefina?”, pensei na hora. Nome histórico... Ah! enfadonho. Eu sempre pensei que certos nomes dependem dos períodos históricos. Ela tinha cara de Sara, talvez Dulce.

Descobri mais tarde que era um nome comum, desses que se escolhe na falta de opções, ou por desamor ao filho que virá ao mundo. O nome dela era Lígia. De fato era forte. Soube que era Lígia quando ela tentou se pelar na frente de todos. Estava em cima da mesa e dançava para si mesma uma canção de Dylan, com aquele sorriso embriagado, forte e vil. Na sorte de ver a futura mulher da minha vida, eu pedi outra cerveja. No fundo, deveria arrastar a curiosidade para algum canto e apenas sonhar com a tal Lígia. Nome curto. Era que nem ela, uma pequena morena de pele tão clara que nas trevas podia se enxergar aqueles ossos, aquela cintura, e os seios pequenos.

Lígia foi presa à força na cadeira pelos amigos. Ficou lá, com cara de dopada, pedindo para que todos dessem as mãos e cantassem algo dos Beatles. Ela, no íntimo, sentia-se em 1967. Tudo bem, eu aceitaria qualquer momento histórico ao seu lado. Estava caído platonicamente por uma viciada em drogas, tão esquelética que parecia que as garrafas vazias seriam mais forte que os seus ossos cruzados. Não tinha medo e colocava a língua para fora desejando que todos se fodessem com seus manuais de boa educação.
Lígia seria por tempos e mais tempos a dona dos pensamentos, povoando minha imaginação, sendo minha única musa.


 




5

Ela gostava de sentir-se como uma musa. Para sempre seria uma gardênia se jamais descesse ao plano dos mortais, ou daquela mesa de madeira vagabunda e já molhada de tanto trago.

Ela pedia para ir ao banheiro. Queria esquecer do fiasco, se trancar um pouco e arranhar a pele. Após, toda a febre e, mais músicas tocadas por um infeliz cantor de reggae, ela voltava ainda mais deprimida.

Nos dias de céu escuro ela pede amor, ela pede uma voz rouca, que rompa o céu e traga o sol.

As janelas estão sem cadeados e as mãos unidas selando uma felicidade antes tão rejeitada.

Ela quer que alguém lhe dê amor além do que o seu coração possa envenenar.

Ela quer que parem de lhe ver como a moça de sorriso quieto.

Ela quer ser apenas uma mulher.

Ela não espera mais pelo príncipe, nem pelos pais a lhe socorrer.

Tão cedo adormece a língua e ela insiste em escrever, escrever para que alguém possa de longe ver, o seu choro, o seu mais bonito choro. Ninguém imagina que aqueles olhos foram feitos para chorar. Ninguém sabe do seu amor, nem ela pede. Com o tempo, indo para a cidade de luzes eternas, ela se acostuma a virar as noites tão sozinha.

Mas as estrelas jazem de perto e, na sua fantasia, ela pode até tocá-las. No entanto, ela é esperta e sabe se virar na escuridão plena de uma noite sem luar. Cata as bolsas, investe na mentira, se faz fortaleza e na cor rubra dos lábios, ela pode cortar àqueles que quiserem mais de um luar.

 


 

6

Eu volto para o silêncio. Ela se dissipa por inteiro em uma névoa de devaneios. Lígia é uma menina tão frágil e amada, que também esconde bêbada, mais uma fantasia.

Acorda cedo, cansa as olheiras com novas alquimias e vai cantar sossegada um novo blue, enquanto debulha feijões como numa prece vulgar.

Ela é a menina mais triste que alguém poderia amar. 


01/02/2009 - Imagens da atriz Soledad Miranda (1943-1970) - Musa do diretor Jess Franco.


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