terça-feira, 26 de abril de 2011

Memórias de um tempo (ainda) de vanguarda: essa tal de marginália

Uma das últimas manifestações da cultura brasileira que irrompeu nos anos de chumbo – a poesia marginal – merece destaque por ser proveniente de um período histórico único em nosso território e por fazer uma espécie de “diálogo” com a prosa urbana das grandes metrópoles, mais que isso: buscou retirar a poeira acadêmica dos versos e tentou populariza-la com a linguagem musical da mesma música brasileira, que sentia as mudanças causadas pelo tropicalismo no ano de 1968.
O termo marginal se referia aos artistas à margem das editoras nacionais naqueles idos de ilusão provocada pelo “milagre brasileiro”. Arma vital contra a repressão ditatorial empregada com maior veemência pelo governo Médici (1969-1974), ela, a poesia, seguiria o percurso de contestação e deboche visto, principalmente, nos jornais nanicos ou também intitulados “jornais da imprensa marginal”.
Ser marginal naqueles idos era estar contra a corrente ufanista que exaltava as garantias de consumo conquistadas pela classe média e elite brasileira. Mais: era a possibilidade de trazer, com alguns anos de atraso, o discurso libertário e utópico da contracultura americana para os trópicos tupiniquins. Os desvairados que tentavam enfrentar com arte e cultura a repressão violenta da ditadura militar, muitas vezes eram denominados “desbundados” – assim como os jovens que não aderiram a luta armada como o público universitário que integrou grupos de guerrilha armada no final dos anos 60 e durante a década de 70.

Waly Salomão: o poeta pós-tropicalista que traduziu a consciência hippie tupiniquim


A ruptura tropical para a arte institucionalizada

Se os “cabeludos alienados”, como eram vistos pela parcela da juventude intelectualizada que aderia à luta armada, ganharam uma pecha de desbundados por quererem apenas curtir a vida e se entregar ao amor livre - bem como às drogas alucinógenas como maconha, LSD, chá de cogumelo e mescalina, e uma volta para o campo em comunidades rurais - eram a resposta daqueles que tiveram a sensibilidade para notar que não havia como responder com uma revolução armada à ditadura. 
Na primeira metade da década de 70, o governo havia praticamente extinguido toda e qualquer reação política civil. O bipartidarismo não atendia as reivindicações da sociedade, visto que o partido do governo, a Arena, era mais forte e a própria oposição, o MDB ganharia força apenas em 1974. Portanto, nos anos do governo Médici a violência estatal totalitária amordaçava a sociedade de forma radical com censura, prisões, cassações e assassinatos. A última tentativa civil de produzir uma guerrilha revolucionária foi exterminada em três anos de combate na região do Araguaia. Os poucos sobreviventes traziam as marcas e a certeza de que não haveria como vencer um governo que detinha apoio de grande parte da população, afinal a “realidade” vendida pelos meios de comunicação mostrava um país em franco e acelerado processo de progresso econômico. 
O milagre econômico atendia os desejos da classe média que podia usar de seu poder de compra para consumir os símbolos modernos de status, tais como aparelhos eletrodomésticos e carros de luxo. A publicidade evocava uma nação segura e ordeira cuja população gozava da alienação produzida pela indústria cultural que ganhava espaço no país. Num cenário de escuridão como o da década de 70 apenas a arte poderia ser usada como resistência e salvação. Contudo, como os artistas preocupados com a realidade brasileira poderiam expressar seu descontentamento se não havia espaços para divulgação, bem como uma censura sanguinária castrava qualquer ato criativo que usasse a liberdade de expressão como arma?


Slogan ufanista do período ditatorial
Só quem buscasse os espaços à margem e tivesse como lema a comunicação como instrumento revolucionário poderia ganhar territórios para expressar sua revolta contra o sistema que padronizava tudo, até mesmo a contracultura que logo virou utensílios de moda para a juventude.
Mas a visão distorcida sobre a contracultura e suas manifestações na arte brasileira é conseqüência direta de um pensamento acadêmico que ficou preso aos baluartes do modernismo. Se as criações do concretismo, por exemplo, eram vistas como um absurdo estético, a poesia marginal, que nasce duas décadas depois, e que almeja romper com o lirismo e o verso, bem como toda forma de engajamento, afinal descreve e explicita, por sua vez, a própria alienação social instalada pela ditadura e os meios de comunicação de massa, é, ela própria, subversiva política e artisticamente revolucionária. Ao criticar todo e qualquer interesse acadêmico em propor uma militância também nas artes, a marginalia das canções de Jards Macalé, Walter Franco, do cinema de Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Ivan Cardoso, bem como a poesia de nomes como Torquato Neto, Walli Salomão, Paulo Leminski, Chacal, Ana Cristina César, se tornou um instrumento de guerrilha cultural que ousava desestruturar as amarras e limites impostos pela arte institucionalizada. O que o tropicalismo almejou nos idos de 1967-68, foi aos poucos “deglutido” como arte popular e aceito até mesmo pelos críticos de primeira hora, que no passado viam o movimento como um recurso do imperialismo americano para alienar os jovens que preferiam o tropicalismo a uma música de raízes brasileiras e de cunho ideológico.
Em 1971, a própria tropicália já era um movimento ultrapassado para alguns nomes egressos do movimento, tais como, Torquato Neto que exigiam uma nova proposta estética que fosse além das aberturas propostas originalmente pelo movimento. O cinema novo que era uma força artística da segunda metade da década de 60 e dialogava com o tropicalismo, era considerado um movimento fadado ao fracasso como força propulsora de uma conscientização social. A grande acusação era de que os filmes produzidos pelo cinema novo e que criticavam o governo recebiam apoio da Embrafilme.
          Nesse período, começo dos anos 70, a comunicação de massa, que começava a despontar no Brasil com a crescente popularização de aparelhos de televisão e, a própria utilização da mídia pelo regime militar para propagar uma propaganda ufanista – justificados como  “força integradora” da Nação -  serviu para o contato da sociedade intelectualizada com os mecanismos de divulgação da indústria cultural. Motivado por essa nova condição, o movimento tropicalista irá se beneficiar das próprias diretrizes que se alinhavam no cenário cultural do Brasil, “despertando” outras áreas da cultura como a imprensa alternativa a se posicionar frente aos padrões estabelecidos naquele período de ditadura militar.

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