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Stanley Kubrick filma Laranja Mecânica: 40 anos depois o filme segue atual |
A derrocada da contracultura começara, por ironia, em pleno auge. Em 1969, o ideal hippie se desintegrava em cores saturadas quando as câmeras de uma equipe de filmagem captaram a morte de um rapaz negro, assassinado por Hells Angels, durante um concerto dos Rolling Stones. Os ideais comunitários dos hippies perderam-se em pesadelos em pouco tempo. De Woodstock ao festival de Altamount - o local da trágica apresentação dos Stones - aliado aos crimes da “família Manson”, chegando à repressão ditatorial em vários países, e, principalmente, com o avanço da Guerra do Vietnã comendo solta nas florestas asiáticas, o sonho de paz e amor perdia o sentido. Tão logo toda a magia psicodélica estava enterrada. Na verdade, nenhum ser humano consegue manter por muito tempo princípios de igualdade num mundo cada vez mais competitivo e estruturado em consumo.
Outro fator para apresentar essa mudança de projetos foi que em pouco tempo, os pacifistas já pegavam em armas para tentar mudar o mundo. Novamente, o sonho durou pouco e o que restou foram tragédias. Isso porque a violência que viria na década de 70 com radicalismos políticos e a morte dos ídolos do universo pop seriam símbolos expressivos de que o futuro do planeta não seria alterado pelo poder jovem.
O mundo não estava preparado para a utopia pacifista e isso ficou evidente quando Stanley Kubrick colocou a pá de cal na “inocência juvenil” da contracultura ao lançar em 1971 o filme Laranja Mecânica, baseado na obra homônima de Anthony Burgess.
Em pouco tempo, o filme tornou-se motivo de polêmica, causando celeuma em vários países. A principal polêmica ocorreu na Inglaterra por ter, supostamente, incitando jovens a cometerem os mesmos crimes do protagonista da obra. Além disso, naquela mesma época, o filme já se converteria num clássico por discutir a violência e a sociedade, captando com tamanha perspicácia a crescente onda de violência juvenil causada por atores sociais “inadequados” perante o sistema. Ao assistir Laranja Mecânica, hippies e caretas, jovens e adultos, todos sabiam que as cenas transgressoras do filme eram uma metáfora adequada para a realidade social que viria.
Mais que uma obra de ficção que aborda o cotidiano de violência de um jovem numa Inglaterra futurista, o filme discute o sistema e suas engrenagens repressoras. Resumindo: o protagonista apresentado como um “câncer” da sociedade passa por um tratamento para regenerá-lo e torná-lo “sociável”. O líder da gangue após ser preso passa por um tratamento experimental denominado “Tratamento Ludovico”. Assim, o objetivo é transformá-lo num cidadão “normal”. É o Estado aplicando técnicas políticas para ajustar a própria sociedade doente e em crise por outros problemas como a própria política.
Laranja Mecânica é uma obra rica em detalhes visuais e de linguagem. Em termos de linguagem, as gírias da gangue de Alex, baseadas num idioma denominado “Nadsat” – neologismos produzidos com a mistura de russo, inglês e cockney - causam certo estranhamento nos primeiros minutos do filme, mas logo compreendemos o contexto de ruptura com a sociedade. Alex usa todas as possibilidades que lhe cabem para subverter as normas sociais impostas a ele (e quem sabe a todos os jovens), seja a não responsabilidade com os estudos e carreira profissional; o questionamento à religião e aos poderes; o distanciamento da relação familiar; o desapego às relações sociais, entre outras características impressas ao personagem Alex.
Se a paz é ultrapassada com a violência, o amor é corrompido com a satisfação em causar a dor ao sexo oposto. Alex usa do sexo como forma de estabelecer uma relação de poder perante as mulheres. Não se permite ao amor, este um símbolo de fraqueza. Inclusive, o sexo sempre é apresentado de forma violenta ou mecânica. Numa das cenas mais polêmicas, o estupro de uma mulher é saudado como arma contra o que, na visão dele, era um relacionamento construído com bases burguesas: uma jovem e bela mulher casada com um escritor de sucesso, bem mais velho que ela. Relação de interesses de ambos, logo o amor determinado como objeto.
Nesta seqüência brilhante do ponto de vista técnico, Kubrick faz com que a cena não seja focada na mulher, mas no velho que é obrigado a ver a esposa sendo currada e agredida por jovens baderneiros. A desestruturação do sistema por parte dos jovens marginais está nessa cena: o estupro é uma metáfora para a revolta dos atores sociais que estão à margem e que não aceitam mais a condição de mero rebanho, seja controlado por pais, Igreja, escolas e Estado. A violência é uma forma de rebeldia, de chamar a atenção, de trazer o caos à normalidade determinada pelos poderosos.
Contudo, o filme se divide em duas partes. Em ambas a violência é o marco principal. Na primeira parte, Alex é o autor de todas as agressões e violências contra a sociedade. Na outra parte, a violência muda de lado e é a vez da Sociedade dar o troco, ou de explicitar que a raiz de toda a violência tem dono...
Com a prisão de Alex, o Estado vê uma grande oportunidade de usar da violência do protagonista como forma de garantir publicidade política.
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Beethoven: reconfigurado na trilha experimental de Laranja Mecânica |
Imagens e música delirante
A fotografia impecável é algo costumeiro nos filmes de Kubrick, um perfecionista em todos os detalhes. Os cenários psicodélicos com móveis no melhor estilo futurista da época dão um tom único ao espetáculo visual que é assistir Laranja Mecânica. Se não chega a ser um caleidoscópio de cores, como na parte final de 2001 – Uma Odisséia no Espaço (filme anterior de Kubrick de 1968), não deixa de ser psicodélico em vários segmentos, talvez para apresentar o mundo delirante erguido pelo protagonista.
Alexander O´Largo, é o personagem vivido com maestria pelo ator britânico Malcom McDowell. A personagem virou um símbolo da cultura pop, assim como o filme. A experiência sensorial se completa com a trilha sonora que mistura Beethoven com música de vanguarda feita por Walter Carlos (hoje Wendy Carlos). Chega a ser hipnótico o efeito visual das cenas de violência em câmera lenta acompanhadas com trechos de música clássica. As agressões na tela parecem coreografadas como um balé e, o que poderia soar como de mau gosto, esteticamente ganha outros contornos.
Alex (ou A-Lex - denominação de homem contrário à lei) é um personagem rico para ser analisado em tão pouco espaço. Diversas análises observam o personagem como um sádico impulsionado por um forte desejo sexual, algo que a psicanálise diria pela relação com as mulheres – sempre num tom de violência, como se todas as mulheres não passassem de um objeto para um prazer fugaz. A simbologia sexual no filme é diversa: inúmeros objetos fálicos presentes em seu cotidiano, das máscaras que usavam e também dos protetores de testículos, ao próprio cenário que lhe rodeia (a cobra em seu quarto, por exemplo).
O prazer de Alex está em submeter atos de violência ao seu redor, não como uma simples extensão de sua personalidade, mas também como reação ao conformismo da própria sociedade que o estimula à inércia e à desconstrução de sua identidade. Portanto, o comportamento agressivo de Alex é uma resposta à sociedade. Integrante de uma gangue ou tribo urbana, ele ganha status em seu universo onde os membros da gangue, os droogs formam com sua indumentária e dialeto próprio um grupo social à margem da suposta “normalidade” do corpo social. Dessa forma, com essa identidade coletiva que tem características próprias, o grupo se une em torno de um bem comum: o uso da violência para distingui-los em uma sociedade cada vez mais homogênea, fora isso há o vínculo dionisíaco da busca do prazer como forma de integração: enquanto alguns jovens se uniam para adorar astros do rock, na sociedade futurista de Kubrick, os jovens se unem em torno do prazer da violência.
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Um símbolo pop |
Laranja Mecânica pode ser interpretado de várias formas, seja com base na psicologia, no direito ou na sociologia. Tornou-se um clássico porque seu tema é atemporal e até hoje gera discussões em torno de seu conteúdo. Nesses 40 anos, o filme mais do que uma obra prima do cinema virou um marco da cultura pop e segue influenciando as cabeças dos cinéfilos que não se cansam de elegê-lo como um dos melhores filmes da história centenária do cinema, portanto: parabéns para esse clássico quarentão!