sexta-feira, 15 de julho de 2011

Prisão e samba

Quando fui preso, alguém me esperou sorrindo e quis conversar uma conversa mole de conversão doada pelo senhor dos senhores que poderiam estar presos; mas livres pelo amor, pela bondade, pela artimanha de deixar os corpos presos, todavia com as almas tão livres que nenhum esquema de segurança poderia prender estes homens paradoxalmente livres em um presídio de segurança máxima.

Eu tinha apenas 22 anos. Ouvi, falei, dormi. 

Agora, tempos e mais tempos depois, nenhuma cela ainda deixou meu coração livre. Meu coração se prende fácil. Chora, sangra, causa repulsa a si mesmo, por ser um coração fraco, tão bobo que se importa com as flores, com as amantes, com as dores que causei. Reticente, sempre bate descompassado. É um samba doído, não é feito para sambar sorrindo. Tem uma ginga que exige mais do gingado. Ou seja, é mais samba lamento. É um samba que vem e bate, bate e vem, lento e num disparate sem graça. É samba de coração mole, daqueles que espera o bater dos outros corações para, aí sim, tentar a harmonia.

Esse coração numa avenida seria sempre desclassificado. Nota mínima, mesmo tendo leveza, alguma graça graciosa, ele seria desclassificado por ser coração antiquado. Daqueles que vem com cartola, terno branco e uma rosa vívida na mão esquerda. 

Por isso meu coração vive preso. Fica algemado numa cela apertada que fica na espera das esperas. Ele se agita todo em breves instantes. Sabe que na lida tem que se mostrar augusto e forte como se fosse de aço, ferro ou chumbo, mas é de carne embriagada em sangue. Meu coração não nasceu para a guerra! E se tenta vencer as provas diárias da vida, logo é expulso por essas fraquezas. Dispensado da ordem, do progresso, ele segue ultraje sem medo de ser errante, mas se asila cortês nos braços de morenas que saibam sambar.

Preso. A supressão do ir e vir. A redução dos instintos para os limites impostos pela ordem. Os limites estabelecendo o pensar. O pensamento ajoelhado em um canto escuro, com goteiras e ratos a identificar a situação incômoda de um dia ter pensado, de um dia ter incomodado. Por isso o homem se cala. Consente à voz, um silêncio mordaz. Desvia os olhos, cabisbaixos e, rente ao chão, não encara o inimigo. Aceita e sinaliza o acordo. Vive para sobreviver. Agradece aos homens, aos líderes, aos deuses de tantos nomes que apenas estáticos julgam os destinos das formigas. 

O homem padece por ter nascido com a esperança da liberdade.

Marcelo Pimenta e Silva - 2009

segunda-feira, 11 de julho de 2011

continho...

Numa grande redoma de vidro, expõem-se os animais selvagens. Não estão adestrados, diz o treinador. Todos eles ainda não se comportam como deveriam. Mas em pouco tempo estarão confortáveis com a situação e apenas viverão dessa forma.  O velho comenta que as regras são bem claras: desfrute deste momento e não pense em mais nada.
Por um lado ele está certo: que animais desprezíveis esses que querem pensar. “Animais não podem pensar!” Ratifica o senhor de terno e gravata ao meu lado.   
É melhor que fiquem nas jaulas, sejam domesticados e tornem-se meros ursos de pelúcia. Estáticos com um sorriso boçal e um perfume estranho de “novidade”. Escuto isso de uma senhora com um bonito casaco de pele. Sua pele parece de plástico. Estranho, mas tudo aqui é feito de plástico.
Caminho observando as espécies que ali estão. Há uma fauna interessante com exemplos da biodiversidade da nossa terra. Eu ia perguntar por que eles não estão se matando, seguindo os preceitos de Darwin, mas nessa hora ciência seria uma piada entre esses senhores e senhoras de bonito sobrenome.
São vários os animais na mesma jaula. O mestre diz que não é jaula, afinal não estão presos. “Você vê alguma algema?”. Digo que não.
Eles têm comida, pegam sol, brincam entre eles e sonham. Adormecem como bebês sem nenhum tipo de droga. “Até fazem alguma sacanagem...” comenta com um sorriso irônico o prestigiado político.
Noto que todos ficam mais calmos quando o outro adestrador entra nas jaulas e liga um aparelho moderno. Daquela caixa sai uma luz e depois uma seqüência de imagens e sons e como num passe de mágica todos os animais selvagens ali se reúnem e ficam ainda mais dóceis... quase que hipnotizados.
Pergunto para o adestrador mais velho que aparelho é aquele que fez com que todos os animais ficassem mais dóceis e passivos.
Ele sorri e diz com entusiasmo: “É uma tecnologia moderna que chegou agora do estrangeiro e se chama televisão!”.


segunda-feira, 4 de julho de 2011

40 anos de Laranja Mecânica: um clássico que não envelhece

Stanley Kubrick filma Laranja Mecânica: 40 anos depois o filme segue atual

            
            A derrocada da contracultura começara, por ironia, em pleno auge. Em 1969, o ideal hippie se desintegrava em cores saturadas quando as câmeras de uma equipe de filmagem captaram a morte de um rapaz negro, assassinado por Hells Angels, durante um concerto dos Rolling Stones. Os ideais comunitários dos hippies perderam-se em pesadelos em pouco tempo. De Woodstock ao festival de Altamount - o local da trágica apresentação dos Stones - aliado aos crimes da “família Manson”, chegando à repressão ditatorial em vários países, e, principalmente, com o avanço da Guerra do Vietnã comendo solta nas florestas asiáticas, o sonho de paz e amor perdia o sentido. Tão logo toda a magia psicodélica estava enterrada. Na verdade, nenhum ser humano consegue manter por muito tempo princípios de igualdade num mundo cada vez mais competitivo e estruturado em consumo.
            Outro fator para apresentar essa mudança de projetos foi que em pouco tempo, os pacifistas já pegavam em armas para tentar mudar o mundo. Novamente, o sonho durou pouco e o que restou foram tragédias. Isso porque a violência que viria na década de 70 com radicalismos políticos e a morte dos ídolos do universo pop seriam símbolos expressivos de que o futuro do planeta não seria alterado pelo poder jovem.
             O mundo não estava preparado para a utopia pacifista e isso ficou evidente quando Stanley Kubrick colocou a pá de cal na “inocência juvenil” da contracultura ao lançar em 1971 o filme Laranja Mecânica, baseado na obra homônima de Anthony Burgess.
         Em pouco tempo, o filme tornou-se motivo de polêmica, causando celeuma em vários países. A principal polêmica ocorreu na Inglaterra por ter, supostamente, incitando jovens a cometerem os mesmos crimes do protagonista da obra. Além disso, naquela mesma época, o filme já se converteria num clássico por discutir a violência e a sociedade, captando com tamanha perspicácia a crescente onda de violência juvenil causada por atores sociais “inadequados” perante o sistema. Ao assistir Laranja Mecânica, hippies e caretas, jovens e adultos, todos sabiam que as cenas transgressoras do filme eram uma metáfora adequada para a realidade social que viria.
            Mais que uma obra de ficção que aborda o cotidiano de violência de um jovem numa Inglaterra futurista, o filme discute o sistema e suas engrenagens repressoras. Resumindo: o protagonista apresentado como um “câncer” da sociedade passa por um tratamento para regenerá-lo e torná-lo “sociável”. O líder da gangue após ser preso passa por um tratamento experimental denominado “Tratamento Ludovico”. Assim, o objetivo é transformá-lo num cidadão “normal”. É o Estado aplicando técnicas políticas para ajustar a própria sociedade doente e em crise por outros problemas como a própria política.
            Laranja Mecânica é uma obra rica em detalhes visuais e de linguagem. Em termos de linguagem, as gírias da gangue de Alex, baseadas num idioma denominado “Nadsat” – neologismos produzidos com a mistura de russo, inglês e cockney - causam certo estranhamento nos primeiros minutos do filme, mas logo compreendemos o contexto de ruptura com a sociedade. Alex usa todas as possibilidades que lhe cabem para subverter as normas sociais impostas a ele (e quem sabe a todos os jovens), seja a não responsabilidade com os estudos e carreira profissional; o questionamento à religião e aos poderes; o distanciamento da relação familiar; o desapego às relações sociais, entre outras características impressas ao personagem Alex.
            Se a paz é ultrapassada com a violência, o amor é corrompido com a satisfação em causar a dor ao sexo oposto. Alex usa do sexo como forma de estabelecer uma relação de poder perante as mulheres. Não se permite ao amor, este um símbolo de fraqueza.   Inclusive, o sexo sempre é apresentado de forma violenta ou mecânica. Numa das cenas mais polêmicas, o estupro de uma mulher é saudado como arma contra o que, na visão dele, era um relacionamento construído com bases burguesas: uma jovem e bela mulher casada com um escritor de sucesso, bem mais velho que ela. Relação de interesses de ambos, logo o amor determinado como objeto.
              Nesta seqüência brilhante do ponto de vista técnico, Kubrick faz com que a cena não seja focada na mulher, mas no velho que é obrigado a ver a esposa sendo currada e agredida por jovens baderneiros. A desestruturação do sistema por parte dos jovens marginais está nessa cena: o estupro é uma metáfora para a revolta dos atores sociais que estão à margem e que não aceitam mais a condição de mero rebanho, seja controlado por pais, Igreja, escolas e Estado. A violência é uma forma de rebeldia, de chamar a atenção, de trazer o caos à normalidade determinada pelos poderosos.
            Contudo, o filme se divide em duas partes. Em ambas a violência é o marco principal. Na primeira parte, Alex é o autor de todas as agressões e violências contra a sociedade. Na outra parte, a violência muda de lado e é a vez da Sociedade dar o troco, ou de explicitar que a raiz de toda a violência tem dono...
            Com a prisão de Alex, o Estado vê uma grande oportunidade de usar da violência do protagonista como forma de garantir publicidade política.

Beethoven: reconfigurado na trilha experimental de Laranja Mecânica

Imagens e música delirante

            A fotografia impecável é algo costumeiro nos filmes de Kubrick, um perfecionista em todos os detalhes. Os cenários psicodélicos com móveis no melhor estilo futurista da época dão um tom único ao espetáculo visual que é assistir Laranja Mecânica. Se não chega a ser um caleidoscópio de cores, como na parte final de 2001 – Uma Odisséia no Espaço (filme anterior de Kubrick de 1968), não deixa de ser psicodélico em vários segmentos, talvez para apresentar o mundo delirante erguido pelo protagonista.
            Alexander O´Largo, é o personagem vivido com maestria pelo ator britânico Malcom McDowell. A personagem virou um símbolo da cultura pop, assim como o filme. A experiência sensorial se completa com a trilha sonora que mistura Beethoven com música de vanguarda feita por Walter Carlos (hoje Wendy Carlos). Chega a ser hipnótico o efeito visual das cenas de violência em câmera lenta acompanhadas com trechos de música clássica. As agressões na tela parecem coreografadas como um balé e, o que poderia soar como de mau gosto, esteticamente ganha outros contornos.
            Alex (ou A-Lex - denominação de homem contrário à lei) é um personagem rico para ser analisado em tão pouco espaço. Diversas análises observam o personagem como um sádico impulsionado por um forte desejo sexual, algo que a psicanálise diria pela relação com as mulheres – sempre num tom de violência, como se todas as mulheres não passassem de um objeto para um prazer fugaz. A simbologia sexual no filme é diversa: inúmeros objetos fálicos presentes em seu cotidiano, das máscaras que usavam e também dos protetores de testículos, ao próprio cenário que lhe rodeia (a cobra em seu quarto, por exemplo).
            O prazer de Alex está em submeter atos de violência ao seu redor, não como uma simples extensão de sua personalidade, mas também como reação ao conformismo da própria sociedade que o estimula à inércia e à desconstrução de sua identidade. Portanto, o comportamento agressivo de Alex é uma resposta à sociedade. Integrante de uma gangue ou tribo urbana, ele ganha status em seu universo onde os membros da gangue, os droogs formam com sua indumentária e dialeto próprio um grupo social à margem da suposta “normalidade” do corpo social.  Dessa forma, com essa identidade coletiva que tem características próprias, o grupo se une em torno de um bem comum: o uso da violência para distingui-los em uma sociedade cada vez mais homogênea, fora isso há o vínculo dionisíaco da busca do prazer como forma de integração: enquanto alguns jovens se uniam para adorar astros do rock, na sociedade futurista de Kubrick, os jovens se unem em torno do prazer da violência.

Um símbolo pop

            Laranja Mecânica pode ser interpretado de várias formas, seja com base na psicologia, no direito ou na sociologia. Tornou-se um clássico porque seu tema é atemporal e até hoje gera discussões em torno de seu conteúdo. Nesses 40 anos, o filme mais do que uma obra prima do cinema virou um marco da cultura pop e segue influenciando as cabeças dos cinéfilos que não se cansam de elegê-lo como um dos melhores filmes da história centenária do cinema, portanto: parabéns para esse clássico quarentão!