Por Marcelo Pimenta e Silva
O conceito de alegoria é tão amplo, quanto sua própria nomenclatura afirma. Mas, entre a exposição de um pensamento, estabelecido como forma figurada, ou a simplória denominação de criação de uma obra artística, que retrata algo para dizer outra coisa, fiquemos com a idéia de que é a expressão de metáforas que sucedidas uma a uma definem poeticamente a alusão de algo que está às claras, mas por nossa ignorância, medo ou mediocridade deixemos nas trevas profundas do inconsciente. Retrabalhar metáforas que escancaram nossas pequenas misérias e contradições é uma das melhores e mais ricas armas que o cinema pode fazer.
É com a possibilidade de nos vermos representados na magia da sétima arte, que alguns filmes, vão além do conceito capitalista, formal e objetivo da produção de cunho industrial do cinema comercial. A radical proposta, de alguns diretores, que realizam filmes artísticos de conceitos radicais, deixa marcas bem mais visíveis nos espectadores, do que produtos culturais plastificados em um “fast food” de imagem e sons.
Filmes difíceis, rotulados como anticomerciais por não se adequarem ao gosto popular da massa é no mínimo uma tentativa de manter essa “massa” consumindo o mesmo lixo descartável que vem apenas para tentar aplacar o vazio dos nossos tempos atuais.
O fato é que ao se ver retratado de forma nada pungente na tela grande, em um mosaico de imagens desconexas, mas que no total simbolizam muito da experiência humana, podemos mudar nossa própria consciência como pessoas.
E esse cinema alternativo que pode nos fazer discutir muitos preceitos e dogmas “engolidos” como “dóceis balas de hortelã”. Passar pela mítica experiência de assistir filmes que nos perguntam muito ao invés de nos dar respostas é de fato de valor ímpar. Por isso, há necessidade de se assistir obras que abusam da metáfora, porque entre as entrelinhas visuais muitas palavras podem e precisam ser ditas.
Metáforas que não explicam, mas que provocam
Destaco agora um filme realizado na América nos anos 70 e que se mantém atual por não perdeu seu caráter radical de provocação. Primeiro, quando falo em América, esqueça a América dos vencedores e cowboys de Hollywood. A América, a qual me refiro, é a terra colonizada por europeus; é a terra de poucas oportunidades que sangra pelas mazelas de ser imposta por leis de mercado como a classificação política e econômica de “terceiro mundo”.
É nesse universo rico em magia, folclore e símbolos exóticos que uma obra pode ser elencada como exemplo radical de cinema de arte: A Montanha Sagrada (Holy Mountain, 1973, México,) do diretor Alejandro Jodorowsky.
A Montanha Sagrada é um dos trabalhos mais intensos do diretor chileno Alejandro Jodorowsky que também atua nos campos da poesia, literatura, teatro, quadrinhos e, com propriedade, é um profundo conhecedor do Tarot e de seus mistérios.
Falar que o filme é uma das obras mais expressivas do diretor é “chover no molhado” porque a própria filmografia de Jodorowsky é o supra-sumo da radicalidade em linguagem, formato e proposta. Mas, Montanha Sagrada é uma experiência única. Tão única que quando foi apresentado no festival de Cannes, em 1973, público e crítica, irromperam em elogios à produção – até aquele momento o cinema ainda não tinha visto uma obra daquela magnitude.
Hermético, instigante, bizarro, alucinante... Inúmeros adjetivos podem ser citados para tentar classificar o inclassificável que é Montanha Sagrada. Partindo da premissa de usar a desconstrução de todos os códigos que temos como valiosos por compreendermos como representações de nossa cultura. Há no filme a destruição de tais valores com uma simbologia surreal que traz do drama para a comédia uma grande crítica ao nosso “modus operandi” como sociedade católica colonizada à força por “forças dominantes”. Com maestria a obra é politicamente rebelde sem abusar de didatismos. Toda a crítica explorada no filme é engraçada por buscar na alegoria sua forma de denúncia da realidade da época.
Um Jesus do avesso
O protagonista é uma cópia do Jesus que conhecemos pela propaganda religiosa. Caído num lugar desértico com moscas na face é encontrado por um anão que lidera um grupo de meninos pelados. Ao ser crucificado e apedrejado por esse bando, Jesus, ou melhor, Ladrão como será identificado no filme, desperta e com ira corre o bando. Porém, torna-se amigo do anão, que não tem as mãos e os pés. A amizade entre os dois acontece após fumarem um belo e gordo baseado.
Ele chega na cidade, e avista cenas tão dantescas que o sentido onírico e delirante parece ser apenas um mero estado de espírito. Ali, convivem burgueses ajoelhados que parecem professar uma fé em procissão, além de um exército que fuzila pessoas como espetáculo para turistas americanos, que tudo filmam e vibram à violência, seja-a militar ou sexual. Também há uma parada militar, onde soldados desfilam carregando galinhas crucificadas. Pode se ver também um séqüito de senhoras que passam vestes brancas manchadas de sangue, como a “teatralização” da dominação do império asteca feita com sapos representando soldados espanhóis.
A partir daí Ladrão e seu companheiro serão levados a uma aventura juntamente a outros personagens que serão “treinados” por um guru e mestre (interpretado pelo próprio Jodorowsky). O treinamento serve para que esse grupo fique no lugar dos deuses imortais e assim possam definir o real sentido da vida. E aí está o objetivo do filme: criticar a obsessão humana de procurar sentidos em tudo, principalmente para explicar a sua condição na Terra. Jodorowsky discute com elementos do teatro absurdo todo o “alicerce” moral que foi constituído pela cultura dominante para tentar classificar em uma estrutura a sociedade, sem levar em conta suas idiossincrasias.
Entre a crueza das cenas, com cortes que não prezam pela exatidão de uma seqüência tradicional ou de narrativa lógica; imagens se destacam: o Ladrão revoltado com as copias dele crucificado, feitas por gordos soldados romanos; as prostitutas de todos os tamanhos e idades ofertando prazer; a torre onde começa a busca existencial junto a outras figuras estranhas e, o próprio interior da torre, onde símbolos diversos encontram uma rara química de conceitos pops e filosóficos, que ao mesmo tempo se completam em significação como uma grande alegoria de desconstrução de todos os sentidos.
Artifícios variados que são justificados no final do filme, quando o próprio diretor explica que o filme e suas imagens são uma tentativa de provocar a sociedade que busca incessamente respostas para tudo.
A Montanha Sagrada é um dos filmes cults que merecem ser revistos sempre, não pelo seu caráter psicológico ao extremo, ou seu visual surrealista, mas sim porque continua atual em sua crítica: a necessidade de viver sem precisar de símbolos para entender quem somos. Somos de fato esse mistério que combina perfeitamente tragédia e comédia cotidiana tão bem refletidos em Montanha Sagrada.
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