quinta-feira, 22 de março de 2012

Jodorowsky: o cinema delirante que instiga





Por Marcelo Pimenta e Silva                                                       

O conceito de alegoria é tão amplo, quanto sua própria nomenclatura afirma. Mas, entre a exposição de um pensamento, estabelecido como forma figurada, ou a simplória denominação de criação de uma obra artística, que retrata algo para dizer outra coisa, fiquemos com a idéia de que é a expressão de metáforas que sucedidas uma a uma definem poeticamente a alusão de algo que está às claras, mas por nossa ignorância, medo ou mediocridade deixemos nas trevas profundas do inconsciente. Retrabalhar metáforas que escancaram nossas pequenas misérias e contradições é uma das melhores e mais ricas armas que o cinema pode fazer.
É com a possibilidade de nos vermos representados na magia da sétima arte, que alguns filmes, vão além do conceito capitalista, formal e objetivo da produção de cunho industrial do cinema comercial. A radical proposta, de alguns diretores, que realizam filmes artísticos de conceitos radicais, deixa marcas bem mais visíveis nos espectadores, do que produtos culturais plastificados em um “fast food” de imagem e sons.
Filmes difíceis, rotulados como anticomerciais por não se adequarem ao gosto popular da massa é no mínimo uma tentativa de manter essa “massa” consumindo o mesmo lixo descartável que vem apenas para tentar aplacar o vazio dos nossos tempos atuais.
O fato é que ao se ver retratado de forma nada pungente na tela grande, em um mosaico de imagens desconexas, mas que no total simbolizam muito da experiência humana, podemos mudar nossa própria consciência como pessoas.
E esse cinema alternativo que pode nos fazer discutir muitos preceitos e dogmas “engolidos” como “dóceis balas de hortelã”. Passar pela mítica experiência de assistir filmes que nos perguntam muito ao invés de nos dar respostas é de fato de valor ímpar. Por isso, há necessidade de se assistir obras que abusam da metáfora, porque entre as entrelinhas visuais muitas palavras podem e precisam ser ditas.

Metáforas que não explicam, mas que provocam


Destaco agora um filme realizado na América nos anos 70 e que se mantém atual por não perdeu seu caráter radical de provocação. Primeiro, quando falo em América, esqueça a América dos vencedores e cowboys de Hollywood. A América, a qual me refiro, é a terra colonizada por europeus; é a terra de poucas oportunidades que sangra pelas mazelas de ser imposta por leis de mercado como a classificação política e econômica de “terceiro mundo”.
É nesse universo rico em magia, folclore e símbolos exóticos que uma obra pode ser elencada como exemplo radical de cinema de arte: A Montanha Sagrada (Holy Mountain, 1973, México,) do diretor Alejandro Jodorowsky.
A Montanha Sagrada é um dos trabalhos mais intensos do diretor chileno Alejandro Jodorowsky que também atua nos campos da poesia, literatura, teatro, quadrinhos e, com propriedade, é um profundo conhecedor do Tarot e de seus mistérios.
Falar que o filme é uma das obras mais expressivas do diretor é “chover no molhado” porque a própria filmografia de Jodorowsky é o supra-sumo da radicalidade em linguagem, formato e proposta. Mas, Montanha Sagrada é uma experiência única. Tão única que quando foi apresentado no festival de Cannes, em 1973, público e crítica, irromperam em elogios à produção – até aquele momento o cinema ainda não tinha visto uma obra daquela magnitude.
Hermético, instigante, bizarro, alucinante... Inúmeros adjetivos podem ser citados para tentar classificar o inclassificável que é Montanha Sagrada. Partindo da premissa de usar a desconstrução de todos os códigos que temos como valiosos por compreendermos como representações de nossa cultura. Há no filme a destruição de tais valores com uma simbologia surreal que traz do drama para a comédia uma grande crítica ao nosso “modus operandi” como sociedade católica  colonizada à força por “forças dominantes”. Com maestria a obra é politicamente rebelde sem abusar de didatismos. Toda a crítica explorada no filme é engraçada por buscar na alegoria sua forma de denúncia da realidade da época.

Um Jesus do avesso

                                                                                                                                
O protagonista é uma cópia do Jesus que conhecemos pela propaganda religiosa. Caído num lugar desértico com moscas na face é encontrado por um anão que lidera um grupo de meninos pelados. Ao ser crucificado e apedrejado por esse bando, Jesus, ou melhor, Ladrão como será identificado no filme, desperta e com ira corre o bando. Porém, torna-se amigo do anão, que não tem as mãos e os pés. A amizade entre os dois acontece após fumarem um belo e gordo baseado.
Ele chega na cidade, e avista cenas tão dantescas que o sentido onírico e delirante parece ser apenas um mero estado de espírito. Ali, convivem burgueses ajoelhados que parecem professar uma fé em procissão, além de um exército que fuzila pessoas como espetáculo para turistas americanos, que tudo filmam e vibram à violência, seja-a militar ou sexual. Também há uma parada militar, onde soldados desfilam carregando galinhas crucificadas. Pode se ver também um séqüito de senhoras que passam vestes brancas manchadas de sangue, como a “teatralização” da dominação do império asteca feita com sapos representando soldados espanhóis.
A partir daí Ladrão e seu companheiro serão levados a uma aventura juntamente a outros personagens que serão “treinados” por um guru e mestre (interpretado pelo próprio Jodorowsky). O treinamento serve para que esse grupo fique no lugar dos deuses imortais e assim possam definir o real sentido da vida. E aí está o objetivo do filme: criticar a obsessão humana de procurar sentidos em tudo, principalmente para explicar a sua condição na Terra. Jodorowsky discute com elementos do teatro absurdo todo o “alicerce” moral que foi constituído pela cultura dominante para tentar classificar em uma estrutura a sociedade, sem levar em conta suas idiossincrasias. 
Entre a crueza das cenas, com cortes que não prezam pela exatidão de uma seqüência tradicional ou de narrativa lógica; imagens se destacam: o Ladrão revoltado com as copias dele crucificado, feitas por gordos soldados romanos; as prostitutas de todos os tamanhos e idades ofertando prazer; a torre onde começa a busca existencial junto a outras figuras estranhas e, o próprio interior da torre, onde símbolos diversos encontram uma rara química de conceitos pops e filosóficos, que ao mesmo tempo se completam em significação como uma grande alegoria de desconstrução de todos os sentidos.
Artifícios variados que são justificados no final do filme, quando o próprio diretor explica que o filme e suas imagens são uma tentativa de provocar a sociedade que busca incessamente respostas para tudo.
A Montanha Sagrada é um dos filmes cults que merecem ser revistos sempre, não pelo seu caráter psicológico ao extremo, ou seu visual surrealista, mas sim porque continua atual em sua crítica: a necessidade de viver sem precisar de símbolos para entender quem somos. Somos de fato esse mistério que combina perfeitamente tragédia e comédia cotidiana tão bem refletidos em Montanha Sagrada.        

Jornalista Flávio Tavares e as memórias da Legalidade





Por Marcelo Pimenta e Silva

Conversar com o jornalista gaúcho Flávio Tavares é sempre a oportunidade de ter uma "aula" de jornalismo, política, história, sociologia... Esse gaúcho nascido em Lajeado, no ano de 1934, com formação acadêmica no Direito, contemporâneo de ícones da profissão como o também gaúcho Tarso de Castro, também foi professor na Universidade de Brasília nos anos 60. Deve ser por isso que cada frase de Flávio Tavares é dita em tom didático, de forma pausada e clara, num tom que hipnotiza quem o escuta. Essa é uma das suas heranças dos tempos de professor. A outra ainda está presente: o olhar vivo e instigante de quem observa a decadência política dos tempos atuais. Não é para menos. Flávio Tavares conviveu com políticos do porte de Getúlio Vargas, Leonel Brizola, João Goulart, Salvador Allende, entre outros. Testemunha do encontro de Brizola com Che Guevara em Punta del Este, no Uruguai, Tavares por força do destino dividiu sua vida entre a profissão e a resistência, quando venceu junto com o povo gaúcho a tentativa de golpe em 1961, no chamado Movimento da Legalidade.
Passados três anos depois, a democracia sofria um duro golpe: o golpe ditatorial silenciava o país à força por 21 anos. Nesse tempo (anos 60), Flávio Tavares chegou a uma encruzilhada: ou ficava mudo ao terror instalado no país ou resistia de forma radical, pegando em armas e vivendo na clandestinidade. Foi dessa forma que conheceu o inferno nos porões militares no ano de 1969. Prisão, tortura e, após o seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick, Tavares foi trocado junto a outros presos políticos pelo seqüestrado. Tavares partiu para o exílio, primeiro no México, depois na Argentina. Quando a ditadura patrocinada pelos Estados Unidos avançava sobre os países do Conesul, Tavares foi preso no Uruguai e, novamente, passou por violências de todo o tipo. Com a pressão da imprensa estrangeira, o jornalista é exilado em Portugal, para em seguida voltar ao Brasil durante a abertura provocada pela Anistia em 1979.
Em 1999, ele exorcizou as lembranças terríveis no premiado Memórias do Esquecimento (Prêmio Jabuti). Cinco anos depois, trouxe um livro que misturava o passado com ficção. O Dia em que Getúlio matou Allende e outras novelas do poder (2004) era uma transcrição, tal qual um sonho, das profundezas do poder político. Na obra, as declarações de um Che Guevara, desnudo de seu papel mítico de revolucionário, a um Allende aturdido com o suicídio de Vargas, cada página do livro é um flagrante da política não com o glamour ao qual é celebrada atualmente em sua rotina de denúncias vazias, coligações hipócritas e demagogia, mas, sim a política que transformava vidas e onde a palavra ideologia era muito mais que um mero substantivo.
Anos depois lançaria pela editora da RBS publicações, o livro "O Che Guevara que conheci e retratei". Na última quarta-feira, dia 7, em Porto Alegre, o autor lançou seu novo livro "1961: O golpe derrotado", livro editado pela LPM editora.
Para saber um pouco mais do livro e das memórias do jornalista sobre o movimento da Legalidade, o jornal FOLHA DO SUL entrou em contato com Flávio Tavares que deu uma entrevista exclusiva para este veículo.




Entrevista 

FOLHA DO SUL - Como surgiu a ideia para o livro?

FLÁVIO TAVARES - Este é outro livro de memórias, tal qual os meus três anteriores. E a ideia surgiu da necessidade de contar detalhes que eu vivi em 1961 como jornalista e, mais do que tudo, como participante direto do movimento da Legalidade E também para relatar detalhes inéditos e repor outros nos seus devidos lugares.

FS - Que dificuldades existem para produzir uma obra que registra tamanho fato para a história do Brasil? Foi um livro mais fácil ou complicado de escrever do que o Memórias do Esquecimento e o Dia em que Getúlio matou Allende?

 FT – Foi um livro mais fácil em um aspecto: descrevo agora o triunfo de um movimento popular derrotando um golpe de Estado da direita. Nele, não há o sofrimento do meu primeiro livro, em que descrevi o horror das prisões da ditadura militar, nem as aflições que desembocaram nos suicídios de Getúlio Vargas no Brasil e de Allende no Chile.

FS - Qual o Flávio Tavares que está nas páginas: o jornalista que observou um fato de dimensões históricas para o país e o descreve para um veículo de comunicação ou o gaúcho militante que estava pronto para defender a legalidade?

FT- Naqueles 13 dias de agosto-setembro de 1961 o jornalismo era militante e combatente. Preparei a edição extra do jornal "'Ultima Hora" que lançou nas ruas o movimento da legalidade, quando os ministros militares anunciaram que iam prender João Goulart. Depois, não só na Rádio Legalidade, mas em todos os lugares, tomávamos posição e andávamos armados, prontos a defender o Palácio do Governo. O povo inteiro foi o escudo humano que protegeu o governador Brizola.

FS - Passados 50 anos, o senhor conseguiu descobrir os reais motivos que levaram Jânio Quadros a renunciar?

FT- No livro, transcrevo a confissão que o próprio Jânio Quadros, pouco antes de morrer, fez a seu neto, de mesmo nome. Ali, Jânio confessava abertamente que renunciou para ser reconduzido com plenos poderes, pois achava que o povo, os militares e os governadores se mobilizariam para levá-lo de volta ao poder nas horas e dias seguintes à renúncia.

FS - Quando a renúncia aconteceu foi imediata a percepção do governador Brizola de que haveria necessidade do uso dos meios de comunicação para reunir o povo em torno da legalidade?

FT – Foi quase imediata a percepção de Brizola. Foi dele, inclusive, a sugestão de que o antigo jornal Ultima Hora fizesse uma edição extra, no domingo, denunciando o golpe, pois sabia que não contava com os dois grandes jornais dominicais daquela época, o Correio do Povo e o Diário de Notícias.

FS - O papel da Última Hora foi decisivo para deflagrar o movimento. Como jornalista deste veículo como foi a decisão de produzir uma edição extra engajada como a do dia 27 de agosto?

FT- Sim, o papel da Ultima Hora foi decisivo, pois denuncia o golpe de Estado e convoca a população a resistir em nome da defesa da Constituição e da ordem. O jornal denunciou o delito, o crime que significava a decisão dos ministros militares de não permitir a posse do vice-presidente João Goulart.

FS - Que dificuldades os jornalistas enfrentavam na cobertura deste episódio?

FT- Nenhuma dificuldade. Todos os jornalistas, até os que vieram dos Estados Unidos e da Europa, voluntariamente abraçaram a causa da Legalidade. Queriam armas, também, queriam lutar. Brizola foi o grande comandante naqueles dias e o rádio foi o grande instrumento de mobilização. A participação popular nos emocionava a todos nós e nos fazia participantes de tudo.

FS - Em algum momento o governador Brizola achava que não haveria uma aceitação popular ao movimento?

FT - Brizola sabia que se o povo fosse informado sobre o que ocorria, poderia integrar-se à resistência. Mais do que tudo, Brizola soube tocar nos brios de todos nós gaúchos, apelando à nossa tradição de honradez e de independência.








FS - Como ele encarava a possibilidade de um conflito como forma de resistência?

FT - A resistência consistia em impedir que Porto Alegre e outros centros com quarteis militares, como Bagé, fossem bombardeados pelos golpistas, que dispunham de aviões a jato. E impedir também que o Rio Grande do Sul fosse invadido pelos fuzileiros navais, estacionados em Florianópolis, e que tinham apoio de navios de guerra e de um porta-aviões.

FS - Havia muita tensão no Palácio Piratini? As pessoas ali presentes estavam preparadas para um conflito?

FT- A tensão era enorme, mas a tentativa de resistir era imensa também. Nós, os civis, recebemos armas e nos preparamos para defender o Palácio, mas e fato não éramos combatentes,  nem havíamos sido treinados para guerrear. Mas, como conto no livro, nós tínhamos uma arma que os golpistas desconheciam, o rádio.

FS - Após o desfecho com a possibilidade da volta de Jango numa revolução sem tiros e mortos, Brizola percebia o feito histórico que ele e o Rio Grande do Sul tinham realizado?

FT – Sim, Brizola apercebeu sempre o sentido histórico do movimento, mas nada pediu para si próprio. Não nomeou nenhum ministro, nem sequer compareceu à posse de Jango em Brasília.

FS - Como foi a chegada de Jango ao Rio Grande do Sul depois desses acontecimentos? Como Brizola aceitou o acordo pelo parlamentarismo?

FT- A chegada de Jango ao Brasil, a Porto Alegre, foi outra vitória de Brizola, que conseguiu enganar a Força Aérea, que queria interceptar o avião que trouxesse Jango de Montevidéu. No livro, detalho como Brizola despistou e enganou a FAB. Quanto ao parlamentarismo, Brizola nunca o aceitou, pois significou podar os poderes do presidente da República.

FS - Recentemente, o senhor especulou no jornal Zero Hora, a possível influência de Che Guevara nas decisões de resistência de Brizola. O senhor esteve presente na Conferência da Organização dos Estados Americanos em Punta Del Este, no Uruguai, junto a Brizola e Guevara, desse encontro pode-se dizer que Brizola mudou sua percepção de fazer política?

FT – Não é exatamente assim. O que eu digo no livro é que, ao conhecer Che Guevara na conferência de Punta del Este, Brizola foi influenciado pelo seu exemplo pessoal de combatente, pela sua tenacidade e coerência. E 19 dias depois, Jânio Quadros renunciou e a direita militar deu o golpe de Estado. A figura do Che ainda estava fresca na memória de Brizola. A mudança da percepção política de Brizola ocorreu antes ainda, como ele mesmo dizia, quando encampou os serviços de eletricidade os Estados Unidos começaram a sabotá-lo.

FS - Como o senhor avalia as ações do governador Brizola naquele momento histórico?

FT- Brizola teve naqueles dias uma audácia e uma capacidade de comando e liderança que jamais se repetiram. Ele comandou o último dos grandes levantes populares do Rio Grande e do Brasil, derrotou o golpe de Estado, tornando possível que se iniciasse um período de governo que buscou entender o Brasil como nação autônoma e independente, sem submissão aos imperialismos da época (nem aos Estados Unidos nem à União Soviética) e em busca das reformais sociais.

FS - Passados cinqüenta anos, qual o legado do Movimento da Legalidade? O que é que deixamos de ter: líderes políticos da grandeza de um Brizola ou o povo brasileiro que não tem a consciência política e social daqueles tempos?

FT- Uma coisa leva a outra. Hoje não há mais líderes políticos porque os partidos se transformaram em grupos de interesse pessoal, que buscam apenas usufruir do poder. A atual estrutura partidária está interessada apenas em anestesiar a população, que aceita tudo e nem se indigna com a corrupção existente no poder, em todos os âmbitos.  A consciência de saber quem é quem, onde está o crime e onde está a verdade, ainda é o grande legado do Movimento da Legalidade.