segunda-feira, 6 de junho de 2011

O Gonzo na Zero: jornalismo marginal na imprensa pop*


 

 

 

* Versão da monografia "Revista Zero: Jornalismo Gonzo na Imprensa de Cultura Pop", de Marcelo Pimenta e Silva 

O Brasil teve inúmeras experiências jornalísticas que remetem a conceitos inovadores. Reportagens com características do jornalismo literário foram publicadas em revistas como O Cruzeiro, Realidade e também no vespertino Jornal da Tarde. Todas essas publicações iam contra a padronização encontrada em revistas como a Veja, por exemplo.

Em termos específicos de jornalismo Gonzo o estilo é encontrado há quase duas décadas na revista Trip, em especial nas reportagens de Arthur Veríssimo (Krette Júnior,  2006). Já a revista Zero, objeto de análise deste artigo, teve uma vida curta na história editorial das revistas de cultura jovem do Brasil, porém marcou época e determinou novos conceitos para a imprensa voltada à cena pop. Entre 2002 e 2004, a revista Zero contou com 14 edições e ficou conhecida como uma publicação que atendia aos gostos e interesses dos leitores da extinta revista Bizz. Justamente por ter sido lançada em um período de ausência da Bizz, a Zero ficou conhecida por atender uma demanda editorial para um público que consumia revistas de música pop. Por isso, neste período, a Zero foi uma alternativa ao mercado do jornalismo musical.

Contando com Marcelo Costa e Alexandre Petillo e, principalmente, os jornalistas Luiz César Pimentel, Marcos Bezzi e Daniel Motta, a revista Zero tinha como suas maiores intenções, a produção de uma revista informativa que não seria “óbvia”, tendo como foco principal, textos feitos com a passionalidade e a vontade de não ter limites editoriais, não sendo restrita ao mundo da música pop e rock, podendo, dessa forma, realizar desde entrevistas com o ex-jogador de futebol Serginho Chulapa; falar de cinema e sexo, como também abordar em suas páginas assuntos como literatura, política, entre diversos outros temas.  

 

Patota da Zero. Da esquerda para a direita: Daniel Motta, Marcelo Silva Costa, Luiz César Pimentel e Alexandre Petillo

 

Uma das principais características da revista Zero foi a de buscar uma experimentação gráfica ou textual em quase todos os números. A inovação em termos editoriais que Pimentel declarava ser a marca da Zero tinha uma proximidade estética com a dos fanzines (pequenas publicações desenvolvidas por fãs de um determinado assunto).

[...] Eu sei fazer um texto-padrão, que é feito na grande maioria dos veículos, mas nós queremos subverter um pouco essa ordem das coisas, e o texto da Zero vai ser tão informativo quanto se ele tivesse saído em outro veículo que tenha um texto-padrão, mas a gente apresenta o texto de outra forma. Não só o texto, mas a embalagem do texto  (Brocanelli, 2003).

 

Na edição de número seis, a capa da Zero vinha com um sósia de Elvis Presley fazendo a típica saudação do gênero de rock pesado heavy metal: dedos em formato de chifre, e a palavra “Drogas”, com a chamada “Nosso repórter toma um ácido em Graceland e desperta a ira de Elvis”, elementos que indicavam que a edição teria como tema comportamental o uso de drogas. De fato, sob o título “Dossiê drogas e rock n’ roll” a revista publicou um material composto por 22 páginas sobre o assunto.

Imersão no submundo de São Paulo

 

Edição polêmica: jornalista usa drogas e relata experiência gonzo

A reportagem selecionada para análise neste artigo apresentava as aventuras de um repórter da revista que havia tomado quatro ácidos, passando mais de 24 horas andando pelo centro de São Paulo em busca do que seria “um retrato de histórias reais de brasileiros de verdade”. Construída sob a forma de relatos, a reportagem “Viagem ao fundo do Brasil dos perdedores” de Bruno Torturra Nogueira (2003) apresenta um texto em primeira pessoa onde além de abordar a questão drogas e, os diversos anônimos marginalizados da megalópole, o repórter será o foco principal da matéria ao descrever as impressões de estar “chapado” pelas ruas da cidade.

Como ao escrever num diário, Nogueira anuncia a missão que precisa realizar: “A idéia era clara – registrar e relatar uma bad-trip de ácido em São Paulo”. Para isso Torturra tinha dois companheiros de viagem: Gregório Sambuca, um músico de 22 anos e usuário de drogas sintéticas e Leon, da mesma idade, que preferiu não ter o sobrenome divulgado na matéria e é arquiteto de origem libanesa, além de sentir “pulsão genética de ódio pela América”. O material para a produção da matéria era precisamente descrito:

 

Em cima da cama, os preparativos: agenda, bloco de notas, duas canetas, gravador de MD, microfone de lapela, uma câmera velha, três lentes, um rolo de filme, uma camiseta limpa, óculos escuros, uma sacola com bananas e o fundamental: quatro ácidos de boa procedência (o famoso bicicleta), uma bola de haxixe e cinco gramas de maconha (Nogueira, 2003 p. 16).

 

No trecho destacado podemos encontrar similaridades com a estética do Jornalismo Gonzo, em especial com o clássico de Hunter S. Thompson no livro “Medo e Delírio em Las Vegas” (Fear and Loathing in Las Vegas). Mais além: podemos ver que a busca pela análise de “encontrar os verdadeiros brasileiros anônimos”, como também a de estar completamente entorpecido para tal ação jornalística, junto a outros dois amigos, remete basicamente ao texto de 1971 em que Thompson, com o pseudônimo de Raoul Duke, parte para o deserto de Nevada com seu amigo advogado samoano para descrever o “verdadeiro sonho americano”. No livro de Thompson há uma passagem em que ele anuncia os materiais que levava para fazer a reportagem:

Nós tínhamos duas bolsas de fumo, setenta e cinco botões de mescalina, cinco cartelas de ácido extremamente potente, um saleiro cheio até a metade de cocaína e toda uma galáxia de multicoloridos estimulantes, tranqüilizantes, gritantes, hilariantes... E também um quarto de tequila, um quarto de rum, uma caixa de Budweiser, cerca de um litro de éter e duas dúzias de nitrito de amila (Thompson, p 10, 2005).

 

 

Hunter S. Thompson: jornalista bandido, ícone do gonzo

 

Nogueira e os dois amigos tomaram o ácido em um apartamento no bairro de classe alta de Higienópolis. Depois, rumaram para a famigerada “Boca do Lixo” paulistana. Ali presenciaram a realidade de uma grande cidade: “Famílias dormindo em papelões, travestis na porta de hotéis (daqueles que o H se confunde com M), bêbados de todas as índoles e néons falhando”. Com medo de que após duas horas de ácido e de caminhadas não justificassem a pauta, Nogueira encontrava na Avenida São João, um velho baixinho com a camiseta do Flamengo. O personagem encontrado era um índio brasileiro de 81 anos, cuja mãe “foi caçada a laço no século 19” e que tinha o nome de “Caraca”, segundo o indígena a tradução queria dizer “Brasileiro”. Todo o texto de Nogueira pode ser analisado como uma profunda crítica social. Crítica aos malefícios das drogas que levam milhares à miséria e a uma vida à margem da sociedade. Em nenhum momento há um discurso de apologia ao consumo. A utilização de drogas para compor a matéria é mais como uma referência ao estilo desenvolvido por Thompson e que muitas vezes é entendido de forma errônea por quem se aventura a praticar jornalismo Gonzo. 

Como destaca Czarnobai (2003), Thompson ficou célebre ao criar reportagens feitas sob o efeito de drogas, mas isso não quer dizer que todo jornalista gonzo deva utilizá-las ou pautar sua matéria com base nesse assunto. A prática de consumir drogas por Thompson é mais uma de suas características para causar o choque, assim como os textos com elementos sarcásticos, agressivos e irônicos. Ao realizar artigos usando esses elementos, além de conferir uma aura de “insano e fanfarrão” para si, Thompson tornava-se um ícone pop da contracultura que escrevia na maior revista de música dos Estados Unidos, a Rolling Stone.

Outro ponto destacado em relação ao uso das drogas na matéria de Nogueira é que para estar “imerso” no mesmo universo decadente dos viciados de drogas das ruas de São Paulo, o jornalista utiliza uma atitude antropológica: a de ficar entorpecido como os personagens que irá descrever na matéria. Desta forma, ele deixa o status de observador distante e isento e se aproxima ainda mais do material humano que irá pautar sua reportagem. Anda com os anônimos urbanos; conversa com diversos personagens desconhecidos do Brasil e escuta muitas histórias de “descida ao inferno” pela droga; sente a revolta dos excluídos que perderam tudo e vivem pelos instantes de fuga da realidade proporcionada com os entorpecentes.

Crítica social que emula a mesma contundência de “Fear and Loathing...”, cujo texto de  1971, trazia como alvo a geração hippie.  Os órfãos dos ideais da contracultura recorriam ao vício das drogas para suprir o vazio existencial que aplacava àqueles que achavam que poderiam mudar o mundo através do pacifismo e da vida alternativa. Se nos anos 70, pouco se relatava sobre os excessos que acometiam uma geração inteira com a dependência das drogas, talvez pela hipocrisia americana, que Thompson tanto criticava em seus artigos, no Brasil, no período histórico da reportagem da revista Zero sobre drogas, ou seja, mais de 30 anos depois da publicação do livro de “Fear and Loathing...”, o assunto ainda é pouco discutido pela imprensa tradicional e quando discutido, ainda recebe julgamentos preconceituosos e moralistas.

 A reportagem da Zero encerra com o jornalista cansado e satisfeito com as experiências, que viveu e relatou: “Estava exausto e feliz. Feliz que deu tudo errado na bad-trip. O dia drogado foi fabuloso e o papel seria pouco para explicar o feliz Brasil dos perdedores”. Podemos verificar que a reportagem é gonzo e se assume como tal. Tem as características estilísticas que mostram uma influência de um jornalismo contracultural que ousa questionar, indagar e provocar alguma reação nos leitores.  Além disso, em nenhum momento, ela se fecha como experiência jornalística. Vai mais além: cumpre os predicados de uma experiência antropológica, onde o jornalista/cientista sabe os elementos que irá utilizar para que a fórmula funcione, tais como descrição irônica e sarcástica de lugares e pessoas; a subjetividade; e acima de tudo: a captação participativa, que faz com que o repórter realize a reportagem tendo o foco narrativo voltado para si mesmo e nas experiências que vivenciou, empregando, assim, mais veracidade ao relato e indo além de “meros juízos e opiniões” sem base ou profundidade para tal.

 

Luiz Cesar Pimentel: a Zero era uma revista feita com a típica paixão dos fanzines

 

Considerações finais


É evidente que a revista Zero trabalhou em suas edições com reportagens e artigos com características Gonzo porque ocorre, dessa forma, o que entendemos como o conceito de interpretação e re-interpretação de John B. Thompson, em sua hermenêutica da profundidade (1995) do meio para com o contexto, que envolve elementos tanto da realidade do autor quanto do receptor. Resumindo: quando da construção das reportagens, no caso a que serviu de análise para esse artigo, o jornalista Nogueira já havia pré-interpretado as formas simbólicas que definem um texto Gonzo: seja com as técnicas de imersão, o uso de sarcasmo, a possibilidade da captação participativa, entre outros aspectos. Ao ter conhecimento destes elementos, ele pode utilizar na reportagem uma narrativa que se assemelha aos escritos de Hunter S. Thompson, o que por sua vez, também faz com que o leitor de uma revista de cultura e música pop encontre formas simbólicas e discursivas distintas de outras publicações, associadas ao estilo, que tem toda uma ligação sócio-histórica com o público jovem de revistas de musica e cultura desde o final dos anos 60.

Portanto, o jornalismo Gonzo é alternativo ao jornalismo tradicional obtendo mais espaço em revistas, livros e internet pela sua liberdade textual e influência literária. A principal tradução desse estilo jornalístico está vinculada ao relato das obsessões humanas, sempre de forma irreverente e irônica, o que atrai a atenção, principalmente, de leitores jovens que consomem as publicações voltadas ao universo pop.


Revista Zero: uma revolução na imprensa brazuca


Bibliografia

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